segunda-feira, 30 de julho de 2012

A crise da literatura comparada, segundo Wellek.



Um artigo científico seria capaz de abalar o mundo das Letras, sobretudo, o mundo da Literatura Comparada, ou o mundo do “estudo comparativo da literatura”, expressão, segundo o crítico austríaco René Wellek, a mais adequada, em se tratando de comparativismo, entre textos literários?


Todo trabalho crítico em relação à arte, tem em si uma metodologia em conformidade aos objetivos propostos em referência ao objeto de estudo. Assim, segundo René Wellek, numa comunicação realizada em 1958, durante o 2º congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada - “The crisis of comparative literature”, postula que “o mais sério sinal do precário estado de nosso estudo é o fato de que não foi capaz de estabelecer um objeto de estudos distintos e uma metodologia específica”, ao criticar os trabalhos de erudição literária, entregues ao factualismo, cientismo e do relativismo histórico do século XIX, nas mãos de Baldensperger, Van Tieghem, Carré e Guyard, estudiosos franceses, que sobrecarregaram a literatura comparada através de uma metodologia ultrapassada.

Segundo Wellek, “a tentativa de comprimir a literatura comparada em um estudo do comércio externo de literaturas”, foi o trabalho que fizeram Van Tieghem e seus seguidores, ao tentar a distinção da literatura comparada à literatura geral, interessando esta, pelos movimentos e estilos de várias literaturas, e confinando àquela, ao estudo de inter-relações, o que seria para Wellek como algo insustentável e impraticável, pois seria apenas o trabalho de tornar a literatura comparada na pequenez de uma mera subdisciplina, levando-a a se interessar apenas e tão somente pelas exterioridades a respeito da obra, ao estudo de fontes e influências, causas e efeitos, o que levaria “a tentativa de erguer cercas artificiais entre a literatura comparada e a geral”.

Para Wellek, o objeto de estudo da crítica seria a própria literatura, e não apenas, o estudo das inter-relações entre literaturas, propondo para isto, um reexame dos objetivos e métodos, ao admitir como objeto de estudo, apenas a própria literatura no bojo da erudição literária, opondo-se à distinção, preconizada pelas propostas clássicas, entre literatura comparada e literatura geral, ao considerar o comparativismo como uma “represa estagnada”, indagando, “Por que deveríamos distinguir entre um estudo da influência de Byron sobre Heine e o estudo do byronismo na França?”, reduzindo a literatura comparada à análise de fragmentos.

Segundo a pesquisadora Tânia Carvalhal, em seu conceituado livro Literatura Comparada, a crítica de Wellek está embasada nos princípios de três correntes teórico-críticas – o formalismo russo, a fenomenologia e o new criticism, que preconizavam a análise de acordo a imanência do texto literário, se rebelando contra o determinismo causal, cuja preocupação maior seria falar sobre literatura, sem a distinção entre literatura comparada e literatura geral, criticando assim, a separação entre crítica literária e estudos literários comparados.

Ainda no clássico livro Teoria da Literatura, editado em 1949, em parceria com Austin Warren, as preocupações de Wellek apontadas no polêmico artigo, “A crise da literatura”, já se faziam presentes, sobretudo, no capítulo V, intitulado “Literatura geral, literatura comparada e literatura nacional”, mostrando sua insatisfação com relação aos rumos tomados pelos estudos comparados, que ora se limitavam a investigar a migração de temáticas da literatura oral para a escrita, ora se preocupavam no relacionamento entre duas ou mais literaturas, ou ora tinham como preocupação maior os dados extraliterários, oposição que fazia Wellek por acreditar na concepção de literatura comparada como uma atividade crítica, sinônimo de crítica literária, admitindo o texto como o objeto centralizador de qualquer preocupação a estes estudos.

Para Carvalhal, cabe uma crítica às postulações de Wellek, sem é claro, desmerecer a revitalização proposta pelo crítico austríaco, ao estimular o comparativismo literário, sobretudo, aos alertas constantes relacionados aos estudos de fontes, influências e relações, como adverte Carvalhal, que “a literatura comparada, sendo uma atividade crítica, não necessita excluir o histórico, sem cair no historicismo, mas ao lidar amplamente com dados literários e extraliterários ela fornece à crítica literária, á historiografia literária e à teoria literária uma base fundamental”, convivendo no mundo das letras em se confundir, como reflexionava Wellek em seus estudos, arregimentando, este, mais o número de restrições do que soluções aos impasses que caracterizaram a dita crise da literatura comparada, ao recusar os estudos da Imagologia, como pretendiam Carré e Guyard, bem como a recorrência à História, ponto de vista da sociologia literária.

Quanto a estas duas refutações por parte de Wellek, a pesquisadora Tania Carvalhal propõe a leitura de dois bons livros, não previstos pelo crítico austríaco,  sendo eles, O brasileiro e o avesso de um personagem tipo, de Guilhermino César, e o livro Carcamanos e comendadores - os italianos de São Paulo, da realidade à ficção (1919-1930), de Mario Carelli.


Profº. Robson Luiz Veiga
Mestrando em Literatura e Crítica Literária PUC Goiás

terça-feira, 17 de julho de 2012

Rapto de Memória



Para o leitor que está cansado do óbvio, da mesmice e do tradicional, querendo viajar por outras arestas literárias, beber de outras fontes literárias, a dica desta semana fica por conta do livro Rapto de Memória de Maria Teresinha Martins, Doutora em Teoria da Literatura, editado pela PUC Goiás em 2010, embora escrito no verão de 1998, contendo 77 páginas, divididas em quatro partes, tendo por prefácio, ninguém mais ninguém menos do que José J. Veiga, autor do brilhante livro de contos Os cavalinhos de platiplanto.

Logo nas primeiras linhas do romance - “Por um momento secular consegui despegar-me de meu corpo e flutuar em minhas legítimas aspirações”, o leitor é convidado a mergulhar num mundo de recordações poéticas, levado por cores à música original, por onde o eu-lírico se metamorfoseia em busca do paraíso perdido, deparando-se “com o rio que, disparado como fecha, percorria, atravessava o tempo e se ancorava em mansas baías”, captando o mundo de seus ancestrais em forma de poeticidade, cuja narrativa é uma caminhada frenética do Eu em transfiguração, marcada por uma perseguição temporal, por onde o ser renasce a cada instante, ficcionalizando o passado que se presentifica por imagens e cores, capaz de ouvir pássaros, pedras, flores e o vento, numa linguagem enlameada de arte, trançando sua história de vida entre as alternativas e as condicionais, sob a ática do reino da imaginação, que vê arte em tudo, num romance historiado em forma de crônica.

Numa mistura de gêneros que beira a escritura do romance “pós-moderno”, ora se delineando como um ensaio filosófico, “Existe o pós-moderno? Não faz diferença o sim ou não, a polêmica atualiza pontos, normas. Há a intenção de fazer um livro sobre nada e o livro do nada”; ora perpetuando como um poema em prosa, “A sombra da mangueira enternece a alma daquele que chora pelo rio da sua aldeia”, característica esta que assusta o olhar inocente do leitor tradicional por perturbar seu “horizonte de expectativas”.

  Neste romance ensaístico, o narrador-personagem ora assume a postura de um Eu que é um rio, que feito tempo, no correr das águas, se ancora na baía, tais como recordações, num jogo linguístico que beira aos grandes escritores, tais como Clarice Lispector; ora este Eu é o presente no correr das águas do Araguaia, cuja “grandeza está na profundidade do olhar de quem me vê”, pois, “não é preciso ser o maior rio do mundo para ser espelho dos céus, mas é necessário argúcia no olhar para captar as profundezas das águas, do ser, da vida”; ora é universo - poesia surreal, resgatando em paródia o canto de vida do guerreiro, e não mais de morte, pois além de ser “bárbara, primária”, era também urbana, pós-moderna, num “tempo sem tempo num espaço sem contorno”.

Em Rapto de Memória o leitor é inserido na latinidade de um ser tupi-guarani que se afirma e se nega ao som dos tambores afro-brasileiros, cujo desejo de “viver, sentir o presente como verdade, como instante único e imponderável”, se recupera na irrecuperabilidade do correr do rio que é tempo, “sem medo de ser feliz na cadeira de balanço, sem receio de viver sonhos e de ter ilusões: tecer a rede, esperar o amanhã”, na satisfação da arte, no encantamento pela vida, na leveza do sonho, na narrativa fragmentada, pois, “devagar apanho coisas, pedaços de acontecimentos, fragmentos de história”, apreendendo o real ao se retirar do próprio real através da imaginação, como postulado por Jean-Paul Sartre no livro Imaginação.

José J. Veiga escreveu no prefácio do livro ter gostado dos achados enigmáticos que enleiam a escritura de Rapto de Memória, “como quem acaba de descobrir verdades, tais como, fala enlameada de arte e se a vida é sonho, a arte é tudo”, que no bojo desta mistura de gêneros, num universo discursivo em fragmentação, se desenvolve assim como descreveu Saramago em um dos seus romances, pois, “A questão é só saber manejar adequadamente as palavras que estejam antes e depois”, e assim faz Maria Teresinha Martins naquilo que foi o seu primeiro livro ficcional.

Robson Luiz Veiga
Mestrando em Literatura e Crítica Literária