quarta-feira, 27 de abril de 2011

quando o rio narra as suas dores em forma de versos!

Pode um rio narrar o seu próprio curso, bem como narrar a sua própria história? Se partirmos para a compreensão do mundo real, tangível, em toda sua concretude, obviamente que não! O rio não fala, apenas desce mansamente as corredeiras rumo ao mar. Porém, se considerarmos o poder das palavras, através da criação artística, por meio do objeto literário, podemos dizer que sim - o rio, não mais como elemento natural, mas como sujeito-personagem-narrador do poema, O rio, de João Cabral de Melo Neto, sendo o rio poeta, o rio filósofo, é capaz de falar e fazer denúncia ao correr da pena das mãos do poeta, tornando-se o sujeito de suas ações, ao expressar em suas faces a sua história: ficção e realidade ao mesmo tempo. Assim, descreveu a doutora em teoria literária, a professora Maria de Fátima Gonçalves Lima, em Pesquisa em Linguagem, editado pela PUC de Goiânia, no artigo - O discurso do poema “O rio” de João Cabral, defendido na XXI Jornada Nacional de Estudos Linguísticos, em Recife, no ano de 2006. Neste belíssimo poema, formado novecentos e sessenta versos, divididos em 60 estrofes, em composição assimétrica, o rio narra a sua própria história, como num romance medieval, a ser transmitido oralmente à população ribeirinha das margens do Capibaribe, como postulava o teórico alemão Walter Benjamin, cujo eu-lírico expõe suas lembranças, experiências e sentimentos de uma realidade vivida e presentificada através do texto, ao descrever a peleja dos homens sertanejos do sertão pernambucano, em sua dureza de vida, numa odisséia dos rios e dos homens, num pessimismo Shopenhauriano, como em Dores do Mundo, traduzindo e revelando o mundo real, não apenas como representação do mundo exterior, como cópia do real, porém, como transfiguração deste mundo real, através da criação literária, numa personificação do rio, que ganha voz e pensamento, ao enunciar “preferi essa estrada/ de muito dobrar,/ estrada bem segura/ que não tem errar/ pois é a que toda a gente/ costuma tomar/na gente que regressa/ sente-se cheiro de mar”. Nesta obra, a imagem ganha força, em meio à materialização figurativa da linguagem em consonância com a presentificação da realidade do mundo do rio em questão, na realização do irreal, atributo que só a obra de arte possui, defendida por Lefebve, fazendo com que o texto, enquanto objeto artístico literário, se abra ao mundo exterior, e enquanto obra artística, se fecha sobre si mesma, numa conotação reflexiva. Assim, a voz poética encarna-se em rio, por meio da prosopopéia, que atribui o discurso literário ao rio-poeta-narrador-personagem, criando uma renúncia do discurso humano, refletido formalmente no corpo do texto poético através da irregularidade métrica de seus versos, ao exprimir a desumanização do próprio homem, em face ao estranhamento do ser da própria arte, que não apenas representa ou copia o mundo exterior, mas presentifica a realiade por meio do discurso-rio, e não, humano. Aí, caro leitor, o que diriam os outros rios, que ora são quebrados e desviados pela ação humana por meio das usinas hidrelétricas que regulam as margens destes rios, por vezes alterando o habitat das populações ribeirinhas, bem como a história de determinadas cidades ou vilarejos que não mais existem, ou que ora são contaminados e mortalizados como é o caso do rio Tietê que corta a maior cidade da América Latina. Por enquanto, ficamos apenas com o discurso em forma poética do rio Capibaribe – discurso literário, emoldurado feito arte, que embora publicado há mais de seis décadas, ainda continua latente como água doce que bate nas pedras, com suas assonâncias e aliterações - fazendo curvas, olhando cenas, descendo vivo ao leito do mar.

Prof. Robson Veiga

Especial para o Diário da Manhã

segunda-feira, 4 de abril de 2011

quando um político pensa que é um deus grego!!!

Por acaso o caro leitor já se deparou com dois políticos conversando em intimidade entre quatro paredes? Não queira: assim como dizia os belos versos de Drummond, “a poesia é incomunicável, fique torto no seu canto, não ame”, não diga nada, não conte, não peça! Pois bem, todo político pensa que é dono da verdade absoluta, o todo poderoso. Assim se deu no último dia 31 de março, dia em que os generais comemoram, aliás, comemoravam, o “dia da liberdade”, o dia da integração nacional, enfatizando a soberania da nação frente à retirada dos comunistas em solo brasileiro - dia da revolução, como ficou conhecido por um lado há história. Pois bem, a nossa digníssima presidenta Dilma Rousseff cortou literalmente na alta uma palestra que seria proferida por um certo general aos aspirantes, em nome da revolução que “salvara” o país das mãos dos guerrilheiros, iniciando o chamado golpe militar, parodiando Chico Buarque, “cale-se”, afasta daqui este cálice. Porém, no bojo das incongruências políticas, que fizeram parte da nossa história, ninguém ainda foi condenado pelos trezentos e cinqüenta milhões dos contribuintes que foram pelo ralo durante o mensalão, e ainda tem gente que jura que tudo não passou de intriga da oposição, se bem que tal recurso poderia ser entregue em forma de cultura, em livros, bibliotecas, aos nossos jovens estudantes da educação básica, que, como demonstram os números, estão carentes, pois não conseguem sair do nível 1, enquanto os demais países estão em nível cinco ou seis numa escala de conhecimento relacionados à leitura e interpretação matemática e lingüística. Mas, retornando à ordem do planalto quanto à referida palestra, a ditadura parece ser mesmo o caminho daqueles que, quando estão abaixo da linha da cintura, ao chegar no poder desconhecem os caminhos por onde assinalam o regime democrático de direito. Assim, ocorreu nos países chamados socialistas de décadas passadas; assim também ocorreu com Cuba, e a nossa vizinha Venezuela; bem como, assim também ocorre com aqueles que levantam certa bandeira de algum sindicato – a finalidade sempre é a conquista ou fazer parte do poder, por muitas vezes sendo indiferentes quanto aos meios, pois os fins os justificam. Com nisso, me lembrei de um ocorrido meio inusitado há dois anos, quando levei sessenta estudantes à Feira Panamazônica do Livro em Belém do Pará, por sinal, na quarta maior feira do livro do Brasil. Bom, ao chegar no recinto, logo fui aos estandes à procura de um livro a pedido de uma colega de escola, que por muito queria ler o livro “Honoráveis Bandidos”, do escritor Palmério Dória, que por razões que o público não chegou a conhecer, por falta justamente do adormecimento da mídia, o livro não se encontrava nas prateleiras, pois, havia sido comprado todo estoque antes mesmo da abertura do evento, sabe lá, Deus, por quê! Como sou persistente, caminhei por todos os estandes, até o momento em que já estava desistindo de procurar, vi lá no canto, quase em abandono, uma pequena livraria, cujo atendente prontamente se dispôs a ir até o estoque à procura de um exemplar, “bom meu cara, todos os livros que tínhamos foram vendidos, porém, deve ter algum no estoque, pois houve uma encomenda de um determinado professor, mas já estamos fechando a feira, neste caso, vou trazer um pra você”. Pelo título, um paradoxo, “Honoráveis Bandidos”, pra se notar que o tal livro é de chamar atenção, mas bem mais é o conteúdo, que caso, leva o caro leitor a se aprofundar nas mazelas que rolam entre quatro paredes quando junto estão dois ou mais políticos. Sendo assim, parabenizo mais uma vez a direção do Diário da Manhã, pelo fato de ser um veículo de comunicação, diferenciado dos demais, mesmo em relação aos grandes nomes, justamente pela singularidade, ao deixar em suas páginas, espaço aberto e democrático, para que todos os leitores possam assim devanear as suas opiniões com os demais. Isso, sim, é estar em um regime democrático de direito.

Prof. Robson Veiga

sexta-feira, 1 de abril de 2011

de santa à prostituta!

Outro dia, estava eu debaixo dum enorme flamboyant na Praça Tamandaré, como de costume matinal, lendo o Diário da Manhã, quando de repente, reinou o silêncio na redondeza de todos os bancos próximos àquele em que estava sentado. Olhei para um lado, olhei para outro, depois para frente, abaixei o jornal, e vi que todos os homens que ali estavam a lavar os costumeiros veículos, deitaram suas mangueiras, desligaram suas bombas, calaram suas vozes, e sinalizaram com olhares para o mesmo ponto. Ao perceber matematicamente o cruzamento de todos os olhares ao mesmo lugar, caminhei mansamente também o meu a tal congruência, virando o pescoço até chegar ao objeto em questão. Neste momento, do meu lado esquerdo, alguém soltou levemente a voz, “sabe, há muito tempo que essa dona não passa por aqui, ouvir dizer que agora, se transformou... numa metamorfose como uma borboleta, largou o marido e filhos, e vive agora a bestiar por aí com outros homens... pelo jeito, cansou de ser santa, agora pega o primeiro que encontra na reta, ou quem sabe, nas curvas que a vida dá”. Logo notei, pela aparência, que se tratava de uma bela dona, fisicamente de parar o trânsito, daquelas cuja brasilidade se faz notar aos adjetivos que logo saíram de bocas apetitosas daqueles que por ali estavam. Por alguns instantes, o mundo parou, mas não os olhares lascivos que escorregavam até o ponto de ônibus, por onde depois, a dita cuja sumira ao passar do primeiro coletivo. Creio eu, que por lá também o silêncio pediu passagem, enquanto por aqui, a vida voltou ao normal. Assim, imitando a realidade, fechei o jornal e recobrei da memória por onde havia visto tal cena, em algum texto, em algum livro. Depois de um tempo, me lembrei da leitura de um conto da literatura portuguesa, precisamente do escritor Eça de Queirós, o maior nome do cenário das letras em terras lusitanas do século dezenove, sendo publicado em 1.880. Era o conto No moinho, belíssima narrativa curta cuja temática era embasada na mudança comportamental de uma mulher, que por ora era santa, uma fada, enfermeira, mulher dedicada à família, “uma senhora modelo”, para depois, a partir do afloramento do desejo propiciado pela presença de Adrião, primo do marido, bem como, a partir das leituras de narrativas românticas, modelares ao romantismo, a nossa personagem, Maria da Piedade, se transformou em mulher adúltera, deixando de lado os afazeres domésticos e piedosos, tais como, cuidar da família adoentada e inválida, como eram o esposo e seus três filhos. Poderíamos dizer que se trata de uma narrativa realista, pois o narrador tece uma crítica à estética anterior, no caso, a estética romântica; bem como naturalista, quando percebemos o aspecto hereditário, ao retratar o narrador, características patológicas aos filhos, advindos do pai – era uma família de inválido, “de sangue viciado”. O que sobressai na narrativa, num processo de construção literária, é a simbologia presente em variados signos no texto, a começar pelo próprio título, pois “no moinho”, representa vazão vagarosa e silenciosa da nossa protagonista, que ao longo da narrativa deixa escapar, por intermédio do narrador, do leito de uma grande represa de monotonia e desprazer, um certo desânimo pela vida que levava, “que apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-na”, pedindo passagem no cortar das linhas para um outro norte, que seria ao final, uma transformação, de virgem à mulher adúltera, de “santa à Venus”, tomada pelo afloramento do desejo após o beijo roubado por Adrião à beira do moinho. Poderíamos assim dizer, que Eça toma da realidade uma temática universal, como a que acabamos de notar ao lado do flamboyant, para ficcionar, há mais de cem anos, uma aparência daquilo que a vida nos revela desde quando o homem é homem.

Profº. Robson Veiga